Opinião

A recuperação judicial e o necessário equilíbrio do direito

O vice-presidente da Aprosoja Mato Grosso comenta avanços no projeto em tramitação no Congresso, mas pontua dispositivos que podem prejudicar os produtores rurais

* Fernando Cadore é produtor de soja e milho, engenheiro agrônomo, atual vice-presidente da Aprosoja Mato Grosso e membro da Aprosoja Brasil

O tema recuperação judicial do produtor rural, pessoa física, veio à tona no último ano e, desde então, tornou-se pauta recorrente nos debates jurídicos nos tribunais, nos veículos de comunicação e nas mídias sociais. No tocante ao produtor rural, duas vertentes se acentuaram. De um lado, alguns acreditam que o crédito ficará escasso, caso o acesso do produtor rural pessoa física seja sacramentado em lei, apesar do entendimento já cristalizado no STJ sobre este tema; do outro, a corrente que defende a isonomia, entendendo que o produtor rural é considerado empresário por exercer profissionalmente atividade econômica organizada, nos termos do Código Civil Brasileiro, e por esse motivo não poderia então ser privado de acessar a Lei de Recuperação Judicial e Falências (LRF) – lei n°. 11.101/2005-, que claramente se presta a regular o instituto para salvaguardar o empresário e a sociedade empresária e, como consequência, preservar os empregos e a função social desempenhada por esses.

Feito esse preâmbulo, vale destacar os últimos fatos relevantes acerca do projeto de lei n°. 6.229/2005, de relatoria do deputado federal Hugo Leal (PSD-RJ), que promove uma reforma completa na LRF. No último dia 18, foi apresentado o parecer do relator, e no texto acolhida a emenda de autoria do deputado Alceu Moreira (MDB- RS), emenda 11, com o propósito de permitir que o produtor rural possa apresentar plano especial de recuperação judicial, nos moldes e regras definidas para as microempresas e empresas de pequeno porte, e, também, para regular o acesso do produtor rural pessoa física à regra geral do instituto da recuperação judicial.

Concentrando o olhar deste artigo na emenda 10, dada a sua relevância para os produtores rurais, podemos destacar alguns avanços que o texto se propõe a fazer na lei, porém, precisamos observar com atenção e cuidado alguns dispositivos que podem se traduzir em aspectos meramente restritivos de direito, bem como cuja aplicação prática possa frustrar os objetivos do legislador.

Se, por um lado, a definição de regras claras que visem restringir fraudes nos processos de recuperação judicial são vistas com bons olhos pelo setor produtivo, como o enquadramento no instituto apenas das dívidas estritamente relacionadas à atividade rural, em contrapartida cria-se uma obrigação sob a qual hoje o produtor não está submetido, e aí referimo-nos ao Balanço Patrimonial, ampliando o custo de contabilidade do produtor, porém sem trazer ganhos objetivos para a análise da sanidade financeira e orçamentária do empreendimento agrícola, uma vez que este já está submetido ao Livro Caixa Digital e ao Imposto de Renda, instrumentos tecnicamente suficientes para uma análise de crédito satisfatória.

Todavia, a opção dada ao produtor rural que queira apresentar um plano especial de recuperação é um grande benefício, tanto para os produtores que se encontram endividados, porém em crise financeira moderada, quanto para os detentores desses créditos. Se, para os credores, a possibilidade de receber as dívidas em até 36 parcelas mensais e com a primeira parcela sendo paga em no máximo 180 dias representa um ganho, por outro, os produtores contam com um processo mais simples e evidentemente muito menos oneroso, com a remuneração do administrador judicial fixada ao máximo de 2% do valor da dívida, a dispensa da obrigação de se realizar assembleia-geral de credores, bem como pela correção dos valores à taxa Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), não deixando o devedor, já em situação de fragilidade, sujeito às mais diversas propostas de juros apresentadas pelos credores.

Embora a possibilidade de o produtor acessar o plano especial de recuperação seja considerada um grande avanço, a proposta peca ao definir o limite das dívidas em R$ 4,8 milhões e ao não estabelecer um indexador inflacionário. Basta lembrar que a lei n° 11.101 é de 2005 e só agora, 15 anos depois, estamos debatendo de fato uma reforma nesse instrumento. Sendo assim, qual será a representatividade desse montante daqui a 10 ou 15 anos? Contudo, quem conhece a produção agrícola sabe que a necessidade de recursos financeiros para o custeio das safras diverge sobremaneira daquela necessidade de capital observada pelos microempreendedores e empresas de pequeno porte de outros segmentos. Ademais, nosso principal concorrente, os Estados Unidos, disponibilizam um regime simplificado de recuperação judicial para os produtores rurais com dívidas de até US$ 10 milhões, ou seja, mais de R$ 50 milhões. Pelos motivos expostos, nos parece adequado elevar o limite de acesso para o plano especial de recuperação para no mínimo R$ 10 milhões, ajustados anualmente à taxa Selic.

No tocante aos recursos controlados, ou seja, crédito oficial acessado através das instituições financeiras e outros agentes integrantes do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), a emenda propõe que essas dívidas não sejam alcançadas pela recuperação judicial. Muito embora um dispositivo logo abaixo condicione essa extraconcursalidade apenas às operações que não tenham sido objeto de renegociação junto às instituições financeiras, não haverá efeito prático, uma vez que os bancos podem convidar o devedor para uma negociação, apresentar um plano de reestruturação de crédito completamente impraticável para a sua situação momentânea e, com a sua óbvia recusa, considerar tal dívida como objeto de renegociação. Sendo assim, o ajuste dessa redação será crucial para que os objetivos do legislador sejam alcançados.

Para o final, deixamos o tema mais polêmico, a Cédula de Produto Rural (CPR). A referida emenda traz em seu contexto que não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os créditos e garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, em caso de antecipação parcial ou integral do preço, ou ainda representativa de operação de troca por insumos (barter). Dito isso, percebe-se que a posição dos credores, em especial das trading companies, está muito bem resguardada através desse dispositivo e da alienação fiduciária de bens móveis, figura trazida pela lei n°. 13.986/2020. Portanto, a pergunta que nos resta a fazer é: em qual momento discutiremos mecanismos para proteger o produtor em posição de credor?

Ora, dá para contar nos dedos de uma única pessoa o número de produtores rurais pessoas físicas que pleitearam a recuperação judicial, porém nem todos os dedos dos nossos parlamentares são capazes de representar o número de produtores prejudicados por RJs fraudulentas de tradings, cerealistas, indústrias de fertilizantes, dentre outras empresas.

Uma gangorra não trabalha com peso em apenas uma das pontas. Precisamos equilibrar essa redação para não institucionalizar um tratamento favorecido para as empresas em detrimento dos produtores rurais.

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