PRODUÇÃO

Cevada no Cerrado? Cereal tem potencial para expansão

Cereal utilizado na fabricação do malte das cervejas, a cevada também pode ser utilizada na alimentação humana e animal

cevada, cereal de inverno
Foto: Pixabay

Cereal utilizado na fabricação do malte das cervejas, a cevada também pode ser utilizada na alimentação humana e animal, e tem potencial para expansão do cultivo no Cerrado do Brasil Central. É o que vem sendo demonstrado pelo programa de melhoramento genético da cevada irrigada na região, coordenado pela Embrapa Trigo (RS) e com ações da Embrapa Cerrados (DF) no Centro de Inovação em Genética Vegetal (CIGV) da unidade, em Brasília. O programa tem sido apresentado a representantes de cooperativas, extensionistas rurais, técnicos e professores universitários que atuam no DF e região.

A cevada é o quarto cereal e quinto grão mais cultivado no mundo, depois do milho, do trigo, do arroz e da soja. Das 145,6 milhões de ton produzidas no mundo em 2021, de acordo com a FAO, a alimentação animal foi o destino de 68% desse montante, seguida pela produção de malte (19%), pela alimentação humana e outros usos (8%) e pela produção de sementes (5%). No Brasil, como as culturas do milho e da soja proporcionam maior volume de alimento a um custo inferior, cerca de 90% da produção de cevada é utilizada na malteação de bebidas, principalmente cervejas.

“Hoje, tem crescido muito o interesse pela cevada para a alimentação humana, uma vez que é um cereal que tem um teor de beta-glucanos (fibras) muito alto, e isso traz alguns benefícios a nossa saúde”, explica o pesquisador Aloisio Vilarinho, da Embrapa Trigo.

Os maiores produtores mundiais são a Rússia (18 milhões ton) e a Austrália (14,6 milhões ton), enquanto o Brasil é o 38º maior produtor, tendo produzido cerca de 500 mil ton em 2021. Os maiores exportadores de cevada e malte são Austrália (9,91 milhões ton) e França (7,65 milhões ton). Embora não seja um importante produtor de cevada, o Brasil é um grande consumidor – o País é o terceiro maior produtor mundial de cerveja, atrás apenas da China e dos Estados Unidos, e consome de 2,1 milhões ton de malte de cevada anuais. Dessa forma, o Brasil é o sétimo maior importador de cevada e malte (1,91 milhão ton em 2021). O maior importador é a China (12,49 milhões ton em 2021).

A área plantada de cevada no mundo teve uma pequena diminuição nos últimos anos, sendo que atualmente 40 a 50 milhões ha têm sido cultivados anualmente com o cereal. Apesar da redução de área, a produção tem crescido, alcançando cerca 150 milhões ton de grãos em função do aumento da produtividade das lavouras ao longo dos anos.

“No Brasil, a situação é bastante parecida. Só que embora a área plantada tenha se estabilizado em 110 a 115 mil ha, temos observado um crescimento nos últimos anos. Tanto que a área prevista para este ano está em torno de 130 mil ha”, aponta Vilarinho, acrescentando que o motivo para o aumento de área é o novo empreendimento da Agrária Malte, maior empresa do segmento no Brasil, em Ponta Grossa (PR), em associação com cinco cooperativas da região.

A nova maltaria terá capacidade de produção de 240 mil ton de malte anuais, segundo o pesquisador. “Embora também trabalhe com a importação de grãos, a maltaria produz boa parte da cevada utilizada na malteação”, completa.

Quanto ao rendimento de grãos, o Brasil tem observado um aumento maior que no restante do mundo, assim como a produção, que apesar de pequena em relação aos principais países produtores, tem crescido a um ritmo superior ao mundial.

Potencial de produção no Cerrado

A maior parte da produção nacional está concentrada na região Sul, havendo ainda uma pequena parte no estado de São Paulo. Mas, segundo, Vilarinho, existe um grande potencial de produção no Centro-Oeste e na região Sudeste, em áreas de maior altitude, principalmente no inverno e sob irrigação.

“O Brasil demanda 2,1 milhões ton de malte por ano para atender à indústria cervejeira e só produz 750 mil ton, ou seja, só um terço do necessário. Para produzir essas 750 mil ton de malte, são necessárias 900 mil ton de grãos. No ano passado, em que batemos o recorde de produção, produzimos 490 mil ton, ou seja, praticamente metade do que seria necessário para produzir o malte feito no Brasil”, analisa.

Segundo o pesquisador, para se produzir todo o malte consumido anualmente no país, seriam necessários 2,5 milhões ton de grãos de cevada por ano. Ou seja, a produção teria que crescer quase seis vezes para atender a essa demanda. Em função do déficit de grãos de cevada e de malte, em 2021 foram importadas 485 mil ton de grãos e 1,43 milhão ton de malte a um custo de quase US$ 1 bilhão.

Vilarinho lembra que apesar das condições favoráveis para a produção da cevada no Sul do Brasil, nos anos em que ocorre o fenômeno El Niño o volume de chuvas fica bem acima da média, sobretudo no Rio Grande do Sul. “E o período que mais chove é a primavera, quando a cevada está entrando na fase reprodutiva, produzindo as espigas, e os grãos vão começar a encher. O excesso de chuva nesse período traz muitos problemas para a qualidade do grão da cevada, pois favorece o desenvolvimento da giberela, doença que aumenta o teor de micotoxina no grão. Se esse teor for muito alto, a cevada fica imprópria para a alimentação e, consequentemente, para a malteação”, explica.

Já nas condições de Cerrado, em que a cevada é produzida no inverno sob irrigação, não ocorre esse problema. “Seria possível produzir um grão com qualidade excelente e um produtividade muito alta devido à quantidade regulada de água. Mas ainda não se produz cevada aqui porque não há maltarias na região. E a distância é muito grande para levar o grão daqui para as maltarias instaladas no País. Nossa logística de transporte está apoiada no modal rodoviário, que é mais caro que o marítimo”, argumenta. À exceção de uma maltaria localizada em Taubaté (SP), as outras quatro plantas brasileiras estão instaladas na região Sul do Brasil – duas no Paraná e duas no Rio Grande do Sul.

Apesar dos entraves, o pesquisador acredita que há mercado interno para a cevada – além da demanda de malte pelas cervejarias, há novos mercados para alimentação humana. Ele cita como exemplo o fato de que todo o milho produzido em Santa Catarina e no Paraná não é suficiente atender à demanda local, e que a logística atual favorece mais a exportação do milho produzido no Centro-Oeste que a comercialização no Sul do País. Com isso, tem havido aumento do uso de cereais de inverno para a alimentação animal. Por outro lado, a queda dos preços do milho dificulta o crescimento da cevada e do trigo para essa finalidade.

Regiões com altitudes acima de 800 metros e temperaturas amenas no inverno são favoráveis ao cultivo da cevada. Segundo levantamento da Embrapa Trigo, quase 5 milhões ha de áreas com essas características e que já são cultivadas com culturas agrícolas anuais na região do Cerrado e no Sudeste poderiam ser utilizadas para o cultivo do cereal, sem a necessidade de desmatamentos – mais de 2,3 milhões ha em Goiás, 2,19 milhões ha em Minas Gerais, 314 mil ha em São Paulo e 106 mil ha no Distrito Federal. “Precisaríamos de cerca de 500 mil ha de áreas de cultivo de cevada no Brasil, considerando um rendimento de 4 ton/ha, para atender à nossa demanda. Temos aqui muito mais do que isso”, comenta o pesquisador.

A disponibilidade de tecnologia, segundo Vilarinho, também pode favorecer o crescimento das áreas com cevada irrigada no Brasil. Em 1960, toda a área agrícola irrigada representava 500 mil ha, e em 2017 alcançou 6,7 milhões ha, de acordo com o Censo Agropecuário do IBGE. O maior crescimento da área irrigada se deu no Sudeste.

Uma importante questão no manejo da cevada apontada por Vilarinho é a época de semeadura. A cultura tem Zoneamento Agrícola de Risco Climático (Zarc) tanto para o sistema de sequeiro como irrigado nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. O Zarc indica os períodos mais propícios ao plantio da cevada com o menor risco de perdas de safra com problemas climáticos como chuvas e geadas. Informações sobre o Zarc para a cevada e outras recomendações técnicas podem ser encontradas nesta publicação.

Mais de duas décadas de pesquisas

Os ensaios do programa de melhoramento genético de cevada irrigada no Brasil Central são conduzidos na Fazenda Sucupira, onde está localizado o Centro de Inovação em Genética Vegetal (CIGV) da Embrapa Cerrados, há mais de 20 anos. Além disso, materiais da Embrapa foram plantados em 2 mil ha no DF, no Vale do Pamplona (GO), bem como na Bahia, para avaliação do potencial da cultura no estado, segundo o pesquisador da Unidade, Renato Amabile.

Ele também cita os trabalhos com irrigação da cevada e outras culturas que geraram informações para o software Monitoramento de Irrigação no Cerrado, que fornece a lâmina d’agua adequada conforme a cultura e ciclo, o tipo de solo e a data de emergência das plantas.

Diversas tecnologias em adubação, irrigação, sementes, entre outras, para a cultura da cevada já estão disponíveis para a região, como lembra o pesquisador. “Muitos triticultores podem plantar cevada, por exemplo. Eles usam 80 a 100 kg/ha de nitrogênio no trigo, e na cevada utilizamos 40 kg/ha. Há uma portaria no Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) que proíbe o uso de cevada com teor acima de 12% de proteínas para malte. Mas para o genótipo de cevada nua* que estamos desenvolvendo para alimentação humana e animal, podemos colocar 80 kg/ha de nitrogênio, pois assim teremos a possibilidade de aumentar o rendimento de grãos e o teor de beta-glucana, benéfica à saúde humana”, afirma.

Amabile também aponta que, em comparação à cevada, o trigo no Cerrado necessita de maior quantidade de água e de um turno de rega mais longo. Além disso, a cevada não necessita de adubações específicas de boro para o pleno desenvolvimento das plantas. “E diferente da cevada na região Sul, não temos problemas com micotoxinas em função da ausência de chuvas na colheita. Conseguimos uma cevada colhida no limpo e com umidade mais baixa, favorecendo uma maior produtividade de extrato”, comenta, explicando que quanto a maior for quantidade de extrato, maior será o rendimento de malte. Outra vantagem observada em pesquisas é que a cevada chega a deixar 28% a mais de palhada no solo em relação ao trigo.

Apesar de não haver maltarias de grande porte no Centro-Oeste, Amabile aponta a existência de micromaltarias como a BR Malte, em Paracatu (MG), que produz maltes para cervejas especiais. Segundo o pesquisador, as micromaltarias são uma possibilidade para a região. No processo de malteação, os grãos umedecidos de cevada são submetidos a temperaturas do ar entre 15 °C a 25 °C e começam a germinar, havendo a transformação do amido em maltose, que é um açúcar. Após essa transformação química, o processo é paralisado com o aumento da temperatura em torno de 80 °C, resultando no malte.

O pesquisador cita resultados positivos de experimentos com sete genótipos de cevada cultivados em diferentes datas em Unaí (MG). “Conseguimos obter, mesmo a 600 m de altitude, 8.200 kg/ha de rendimento de grãos em uma área de 42 ha com a BRS 180, nosso primeiro material de cevada para o sistema irrigado do Cerrado, plantado a lanço e com o uso grade porque não havia uma plantadeira de trigo”, lembra.

Como 90% da cevada consumida no Brasil é destinada à indústria do malte, ele argumenta que as cultivares devem ser desenvolvidas com características agronômicas e malteiras. A cultivar de cevada irrigada de ciclo mais tardio já lançada pela Embrapa para o Cerrado é a BRS 195 (120 dias). Já a cultivar de cevada nua que está em desenvolvimento tem ciclo de 103 a 105 dias no Distrito Federal.

Segundo Amabile, o problema para a cultura no Cerrado é o golpe de calor no mês de setembro, quando temperaturas elevadas do ar provocam um aumento do teor de proteína nos grãos. “Ao que tudo indica, se você der conforto térmico usando lâminas d’água mais baixas, o teor de proteína se mantém mais baixo, mas mais estudos de pesquisas se fazem necessários”, observa.

Conforme portaria editada pelo Mapa, o tamanho do grão de cevada é classificado em três classes, conforme o percentual de grãos que fiquem retidos em peneiras de 2,5 mm de largura e que vazem em peneiras de 2,2 mm. Assim, os grãos de classe I são os de maior tamanho. Nesse sentido, a época de plantio da cevada é importante porque afeta a qualidade dos grãos produzidos.

“Você pode fazer malte com peneira abaixo de 2,2 mm de largura, mas não é interessante. No programa de melhoramento, resolvemos a questão do acamamento das plantas eliminando materiais com esse problema, e somente selecionamos materiais com mais de 80% de grãos de primeira classe”, afirma o pesquisador, ponderando que há uma variabilidade nesse percentual a cada ano.

Dados de um experimento com diversas cultivares e seis diferentes datas de plantio (de 1º de abril a 1º de junho) mostram que há variações na porcentagem de grãos que ficam retidos na peneira maior (2,5 mm) em função da data do plantio, o que indica a necessidade da semeadura na época adequada para se ter maior classificação.

No programa de melhoramento genético, a maioria dos cruzamentos de plantas é realizada na Embrapa Trigo e uma parte na Embrapa Cerrados. Naquela unidade, são obtidos, por ano, cerca de 450 materiais de duplo haploides (plantas homozigotas obtidas a partir da duplicação do cromossomo de uma planta haploide, ou seja, que tem apenas um conjunto de cromossomos). Após os cruzamentos, as populações são levados a campo para a seleção de indivíduos interessantes do ponto de vista agronômico.

Segundo o pesquisador, há uma projeção de 11 mil ha cultivados com cevada irrigada no estado de São Paulo em 2023, e os produtores estão utilizando materiais desenvolvidos pela Embrapa para o Cerrado. A Empresa também desenvolveu e registrou para São Paulo, Goiás, Minas Gerais e o Distrito Federal as cultivares BRS 180, BRS Kalibre, BRS Itanema e BRS Deméter, BRS Cauê, BRS Sampa, BRS Manduri e a BRS Savanna.