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Estudo propõe formas para conservar áreas úmidas do Cerrado

De acordo com pesquisa, destruição do bioma põe em risco a segurança hídrica e energética do Brasil

O Cerrado é o mais ameaçado dos grandes biomas do território brasileiro. E sobretudo, uma parte especialmente vulnerável do Cerrado são suas áreas úmidas, que garantem a existência de rios perenes e abastecem nada menos do que oito bacias hidrográficas.

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Sendo elas: Xingu, Tocantins, Araguaia, São Francisco, Parnaíba, Jequitinhonha, Paraná e Paraguai, entre outros rios importantes, que nascem no Cerrado. No entanto, a destruição de áreas úmidas não ameaça apenas a biodiversidade e a extraordinária beleza das paisagens cerratenses. Mas também, põe em risco ainda a segurança hídrica e energética do país.

Além disso, as áreas úmidas são também um extraordinário repositório de carbono (C), estocando mais de 200 toneladas por hectare. E alterações em seu equilíbrio cíclico tendem a liberar metano (CH4) para a atmosfera, um dos principais gases de efeito estufa (GEE).

O problema é que a própria definição de áreas úmidas é confusa. E essa confusão tem sido explorada por grandes produtores rurais que, não contentes em converter descontroladamente áreas secas do Cerrado em terras agricultáveis.

Drenar áreas úmidas do bioma?

cerrado, vegetação, falta de chuva soja
Foto: Agência Brasil/arquivo

Ademais, cogitam também drenar as áreas úmidas, para estender as lavouras de soja até o fundo das veredas. Se não fosse por outros motivos, até mesmo do ponto de vista estrito do interesse econômico isso equivaleria a erguer uma pedra para deixá-la cair sobre os próprios pés, pois a possibilidade de irrigação depende da sobrevivência dos mananciais.

Para dirimir a confusão e fornecer aos tomadores de decisão sólidos critérios científicos, um grupo de pesquisadores acaba de produzir um artigo contemplando os múltiplos ecossistemas englobados pelo conceito de áreas úmidas. Trata-se de “Cerrado wetlands: multiple ecosystems deserving legal protection as a unique and irreplaceable treasure”, publicado no periódico Perspectives in Ecology and Conservation.

“A falta de definições precisas tem embaralhado a regulamentação, deixando importantes segmentos do Cerrado desprotegidos. Nosso objetivo foi esclarecer o que são áreas úmidas; que ecossistemas podem ser abarcados por esse nome; que dinâmicas eles apresentam; e o que devemos fazer para protegê-los”, diz à Agência FAPESP a pesquisadora Giselda Durigan, primeira autora do artigo.

Proteção integral do Cerrado

Plantação de Café na Embrapa Cerrado onde são testadas tecnologias de IDC, campo
Plantação de Café na Embrapa Cerrado. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Segundo a pesquisadora, a confusão que embaralha a regulamentação deve-se ao fato de que, dentro das áreas úmidas do Cerrado, existem diversos tipos de vegetação, que resultam em múltiplas denominações regionais.

São campos úmidos, campos de murundus, turfeiras, veredas, palmeirais, buritizais, matas de galeria, matas de brejo e por aí vai. Às vezes, em uma única área úmida, existem dois ou mais tipos de vegetação, desde campos limpos até florestas densas, o que tem dificultado seu entendimento, delimitação e proteção.

Ela conta que o artigo em pauta resultou de um esforço multidisciplinar, envolvendo especialistas em vegetação, hidrologia, ecofisiologia, conservação, restauração e legislação ambiental, que utilizaram seus conhecimentos e experiências práticas para unificar e disseminar sua compreensão sobre o assunto. O grupo teve apoio da FAPESP por meio de três projetos.

“Para nós, todas as áreas úmidas devem ser igualmente e integralmente protegidas por lei, garantindo-se que não sejam convertidas para cultivo e que seus pulsos naturais de encharcamento ou inundação não sejam afetados pelo uso da terra ao redor. Práticas de exploração sustentável, como a apicultura e o extrativismo, por exemplo, podem ser admitidas, mas precisam ser validadas e regulamentadas”, enfatiza Durigan.

E sua ênfase se justifica, pois as ameaças às áreas úmidas são muitas no Cerrado, destacando-se barramento dos córregos, drenagem das terras brejosas, expansão de áreas urbanizadas, obras de infraestrutura, extração descontrolada de água de poços para irrigação e plantação de árvores, principalmente de eucalipto, em bacias hidrográficas inteiras, onde a vegetação original não era floresta.

Barramento de córregos

transcerrado Piaui soja
Foto: Aprosoja-PI

E sua ênfase se justifica, pois as ameaças às áreas úmidas são muitas no Cerrado, destacando-se barramento dos córregos, drenagem das terras brejosas, expansão de áreas urbanizadas, obras de infraestrutura, extração descontrolada de água de poços para irrigação e plantação de árvores, principalmente de eucalipto, em bacias hidrográficas inteiras, onde a vegetação original não era floresta.

“Todas essas atividades são altamente impactantes. Reduzem o nível do lençol freático ou podem até mesmo exauri-lo localmente, pondo em risco a segurança hídrica e os serviços ecossistêmicos do Cerrado. É algo que precisa ser urgentemente impedido por meio de legislação competente e da aplicação efetiva da lei”, afirma a pesquisadora.

Durigan comenta que a Lei de Proteção à Vegetação Nativa trata de maneira bastante confusa as áreas úmidas, deixando uma parte delas como Áreas de Preservação Permanente (APP) e outra parte como Áreas de Uso Restrito (AUR). Mas que alguns tipos de áreas úmidas do Cerrado não se encaixam nas definições dos tipos mencionados, o que tem gerado imprecisão na aplicação da lei, com conflitos jurídicos, sociais e políticos.

“Buscando pacificar a situação, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que, dada a sua inquestionável importância ambiental, todas as áreas úmidas devem ser entendidas como protegidas, sejam como APPs, sejam como AURs, independentemente da nomenclatura. Foi essa decisão que a resolução do Consema do Estado de Mato Grosso desrespeitou”, sublinha a pesquisadora.

A boa notícia é que existe, no momento, um grande grupo de técnicos e cientistas, representativos de diferentes regiões do Brasil, empenhados em realizar o Inventário Nacional de Áreas Úmidas, sob a liderança dos especialistas Wolfgang Junk, do INCT Áreas Úmidas (Inau), para dar suporte ao Ministério do Meio Ambiente. O trabalho conta com a participação de Cátia Nunes da Cunha, professora da UFMT.

“A Plataforma MapBiomas incluiu recentemente a legenda ‘Áreas Úmidas’ em seus mapas, o que se constitui em grande avanço. Porém, demarcar as áreas úmidas em campo, na escala de uma propriedade rural, não é uma tarefa fácil e isso atrapalha a aplicação das leis. Nosso artigo propõe critérios objetivos, baseados no solo hidromórfico, na flora endêmica e na elevação máxima do lençol freático para facilitar a delimitação de áreas úmidas em escala local”, conclui Durigan.