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Entenda como estão os debates sobre a aquisição de terras por estrangeiros

Com discussões diferentes no Executivo, Legislativo e Judiciário, o tema tem despertado posições contrárias dentro e fora da política

O debate sobre a aquisição de terras por estrangeiros voltou à tona em dezembro do ano passado por conta da aprovação no Senado de um projeto de lei, de autoria do senador Irajá (PSD-TO), que pretende revisar a legislação atual do assunto. Ao propor flexibilizações e jogar luz aos limites de compra e arrendamento já praticados atualmente, a matéria despertou reações inflamadas. O presidente Jair Bolsonaro chegou a dizer em uma transmissão ao vivo que não entendia a aprovação e vetaria a mudança legislativa.

Em poucas semanas, o tema voltou a ser debatido dentro de outro projeto de lei – o que institui os Fundos de Investimentos para as Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro) – e até no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de duas ações anexadas. Diante de tantas discussões, nós preparamos uma reportagem sobre como este assunto está tramitando em Brasília.

Fiagro

O projeto de lei 5.191 de 2020, de autoria do deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), pretende criar o Fiagro. A nova modalidade de fundo de investimento, voltada para o agronegócio, deve seguir regramentos já praticados por fundos de investimento imobiliários. Para a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o Fiagro deverá “criar instrumentos no mercado de capitais para financiar a produção agropecuária, em vez de se recorrer ao Tesouro Nacional”.

Na proposta, uma das opções de aplicação dos fundos são os imóveis rurais. Como não há restrição sobre a nacionalidade do investidor que aplica seu dinheiro no fundo, por meio de cotas, foi levantado o debate sobre a influência de estrangeiros no mercado de terras brasileiros através do Fiagro.

O senador Paulo Rocha (PT-PA) chegou a protocolar uma emenda pedindo a retirada do trecho do projeto que permitia o investimento em propriedades rurais. Na justificativa, o senador escreveu que “ainda que o autor ressalte que os estrangeiros não poderiam ter posse ou domínio de propriedade rural, ao movimentarem as cotas correspondentes no Fundo, na prática estariam vendendo, arrendando e comprando terras no Brasil”.

De acordo com o advogado Mauro Faustino, a interpretação está equivocada. “Quem passa a ser proprietário do imóvel [que é repassado ao fundo] é a instituição administradora do fundo e ela afeta aquela imóvel para o fundo. Qualquer ingerência, administração e exploração vai ser feita por esse proprietária que é a administradora do fundo e aí o que tá sendo ofertado é uma cota representativa da exploração desses imóveis. Qualquer pessoa pode entrar na nossa corretora e comprar uma cota, assim como o estrangeiro. Ele é apenas um investidor que vai emprestar um dinheiro para investir naquele fundo e depois angariar retornos através da exploração feita, muitas vezes, por terceiros”, explica.

O advogado Jorge Marcelino diz que a legislação brasileira já permite a constituição de fundos de investimentos voltados a determinadas aplicações financeiras, como imóveis rurais, de forma que, havendo uma participação grande de estrangeiros, eles acabem influenciando e tendo poder voto e de veto em algumas ações administrativas do fundo.

“É preciso diferenciar os fundos negociados em mercado de balcão, onde efetivamente esse cotista do fundo não vai ter grande influência na gestão desses ativos. E esses fundos voltados para o interesse de uma determinada instituição estrangeira ou investidor estrangeiro que vai constituir esse fundo, vai utilizar-se da estrutura de um fundo ao invés de utilizar-se de uma estrutura societária brasileira”, explica Marcelino.

Marcelino pontua que o Fiagro, da forma como está proposto, não daria poder decisório a estrangeiros. “O fundo de investimento é bem regulamentado e submetido a regras muito rígidas de governança e de transparência, inclusive fiscalizados pela CVM [Comissão de Valores Mobiliários], é diferente de um estrangeiro que tenha o poder de controle de uma empresa”.

A FPA chegou a divulgar uma nota técnica esclarecendo que a proposta do Fiagro não alteraria a legislação sobre aquisição de terras por estrangeiro (lei 5.709 de 1971). Durante votação no Senado, a emenda do senador Paulo Rocha foi retirada pela bancada do PT e o projeto foi aprovado sem alterações. A matéria aguarda sanção presidencial.

Julgamentos na Suprema Corte

Enquanto parlamentares ainda debatiam a polêmica em meio ao projeto de lei do Fiagro, ministros do STF iniciaram um julgamento virtual no dia 26 de fevereiro sobre a constitucionalidade de se igualar empresas brasileiras, com participação de capital estrangeiro, a empresas estrangeiras no processo de compra e arrendamento de propriedades rurais. Neste julgamento foram anexadas duas ações diferentes, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 342 e da Ação Cível Ordinária (ACO) 2463.

Esta equivalência prevista na lei 5.709 de 1971 faz com que empresas nacionais com participação de capital estrangeiro possuam restrições para compra de terras. Para adquirir até 100 Módulos de Exploração Indefinida (MEI) de terras é necessário apresentar um projeto de exploração da área ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) que poderá conceder ou não autorização para compra. Acima desta medida a aquisição depende de aprovação pelo Congresso Nacional. A medida de um MEI varia, de acordo com região e município, entre 5 e 100 hectares.

O julgamento foi interrompido graças a um pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes e não tem previsão de quando retornará para julgamento. Para advogados que trabalham com este tema, o maior conflito no assunto é a falta de segurança jurídica. Já que o entendimento sobre esta equiparação de empresas sofreu mudanças ao longo dos anos.

“Toda essa controvérsia advém de uma lei de 1971 que equipara as empresas brasileiras controladas por capital estrangeiro a empresas estrangeiras. Acontece que em 1988, com a entrada em vigor da Constituição Federal, o conceito de empresa brasileira foi definido pela constituição, então a própria AGU [Advocacia-Geral da União] passou a entender que aquela equiparação feita pela lei de 1971 não deveria mais vigorar, ou seja, a empresa brasileira não precisaria passar por todas as aprovações, estar sujeitas a todas as restrições previstas na lei de 1971. Em 1994, a AGU emitiu um primeiro parecer entendendo que aquela equiparação não teria sido recepcionada pela Constituição Federal. Em 1998, adveio um novo parecer da AGU no mesmo sentido. O grande problema foi que em 2010, a AGU, emitiu um terceiro parecer mudando completamente o entendimento. Ela passou a entender que aquela equiparação permanecia em vigor e que ela não ofenderia, não seria contrária a Constituição Federal. Então, a partir de 2010, a AGU passou a entender que as empresas brasileiras controladas por capital estrangeiro estariam sujeitas às restrições da lei 5.709.”, expõe o advogado Ricardo Quass.

Para os profissionais ouvidos pelo Canal Rural, esta equiparação é equivocada. “Nós já temos na Constituição e nas leis infra isso muito bem esclarecido. A empresa brasileira – está na constituição, este é o artigo 171 – é aquela constituída sob as leis brasileiras e que tem a sua sede de administração no país. O artigo 1126 do Código Civil também deixa claríssimo, praticamente falando o mesmo, que é a ‘nacional sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira’. Ou seja, pouco importa quem participa dela, pouco importa de onde vem seu capital”, argumenta Faustino.

“Quando colocamos a propriedade de terras por meio de empresas brasileiras, isso fica mais bem regulamentado. Porque quando o estrangeiro tem diretamente a posse ou a propriedade do imóvel rural, ele não está inteiramente submetido ao ordenamento brasileiro, já que ele está fora do Brasil. Então qualquer irregularidade que ele incorra, ele já está com parte da sua responsabilidade fora do Brasil. Agora, quando nós temos uma empresa brasileira que detém esse ativo, ela está totalmente submetida ao ordenamento brasileiro. Ela tem administradores residentes no Brasil que respondem perante a legislação ambiental, agrária, mercantil e societária”, defende Marcelino.

Revisão da lei atual

O projeto de lei 2.963 de 2019, de autoria do senador Irajá (PSD-TO), aprovado pelo Senado e à espera de votação na Câmara dos Deputados, poderia encerrar o debate no STF. A matéria, que propõe a revogação da lei atual e o estabelecimento de um novo texto com flexibilizações, exclui empresas brasileiras com participação de capital estrangeiro das restrições previstas para pessoas jurídicas estrangeiras.

“Caso o projeto do senador Irajá seja aprovado, o Supremo pode vir a ser chamado para decidir se a nova lei está ou não em conformidade com a constituição. Mas o que poderia ser decido nesse novo caso não tem relação nenhuma com o que vier a ser decidido pelo Supremo sobre a legislação de 1971. O parecer do senador Irajá revoga integralmente a lei de 1971.  Ele valida todas as aquisições que foram feitas até aprovação da lei e ele passa a regulamentar o futuro”, acrescenta Quass.

Além deste ponto, o projeto de lei do senador propõe que pessoas físicas e jurídicas estrangeiras possam adquirir até 15 módulos fiscais (área que varia entre 105 e 1350 hectares, a depender do município brasileiro) de forma livre, sem necessidade de autorização do Incra ou outro órgão público. A exigência atual de apresentação de projetos de exploração da terra adquirida também deixaria de existir.

Já nos limites territoriais, a nova legislação manteria os parâmetros atuais tanto para compra quanto arrendamento: 25% da superfície de cada município, com restrição de 10% da área total para cada nacionalidade.

“Como consequência lógica da aprovação deste projeto de lei, nós teríamos um aporte maior de capital estrangeiro nestas áreas, principalmente por grandes compradores de commodities, como a China que tem interesse em aumentar eficiência da sua cadeia de aquisição. Eu acho que nós poderíamos ter um investimento benéfico em termos de eficiência no agronegócio, de investimento em infraestrutura. Porque se eu invisto numa produção na aquisição do imóvel, mas no ato seguinte encontro gargalo no transporte até o porto, na infraestrutura portuária ou na frota de transporte deste produto, muito provavelmente em um segundo momento nós teríamos investimentos nestas áreas”, sugere Marcelino.

Posicionamento do governo

O Canal Rural buscou o Incra para entender a posição do órgão sobre o assunto, mas não teve respostas. Já o Ministério da Agricultura informou que não irá se manifestar sobre o assunto. De toda forma, o chefe do Poder Executivo federal já declarou, ainda em dezembro de 2020, que é contra qualquer flexibilização nas leis sobre aquisição de terras por estrangeiros.

“Ele [estrangeiro] pode começar a comprar terras no município que ele sabe, de uma forma ou de outra, o que tem no subsolo, daí começa a explorar… Não pode acontecer isso no Brasil. Passou no Senado, alguns senadores falaram que o projeto é bom, não me convenceram, vai para a Câmara, não sei como ela  vai proceder. Mas se a Câmara aprovar tem o veto meu, tem o veto meu e daí o Congresso vê se derruba o veto ou não”, estabeleceu o presidente Jair Bolsonaro.