Diversos

'Não se pode falar de alimentos e não levar em conta a América Latina'

Assessor especial do governo comenta as discussões da primeira Cúpula Internacional de Sistemas Alimentares

Assessor especial do governo e integrante da comitiva brasileira na Cúpula Internacional de Sistemas Alimentares, o diplomata Fernando Zelner comenta os preparativos do evento que será realizado em setembro na Assembleia Geral da ONU, em Nova York.

Zelner está participando ativamente das discussões sobre abastecimento e segurança alimentar. Ele agora se encontra na capital italiana, Roma, onde o evento tem sua primeira realização (uma pré-cúpula). A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, lidera a comitiva brasileira e já deu declarações sobre o combate à fome, problema mundial que se agravou durante a pandemia do novo coronavírus.

Confira a entrevista do representante do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) à repórter Paola Cuenca, do Canal Rural.


Canal Rural – Qual a importância da Cúpula dos Sistemas Alimentares?

Fernando Zelner — A Cúpula foi convocada pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, por iniciativa própria. Esse é um elemento importante porque quer dizer que não é um evento intergovernamental. Quando as reuniões são convocadas pelos governos, os governos decidem cada etapa do processo preparatório e há uma grande preocupação com transparência, com inclusividade e com participação. E essa Cúpula foi convocada pelo secretário-geral e delegada a diversas entidades acadêmicas, setor privado, ONGs, outras organizações internacionais, para que cada uma coordene um pedacinho da agenda. E o grande problema é que algumas dessas organizações que ganharam pedaços, áreas temáticas para coordenar, têm agendas específicas. Acho que o principal delas, o maior exemplo de alguém que é  importante para a gente, é que tem uma ONG lá, por exemplo, que defende o fim, a redução do consumo da carne vermelha. Então, é uma organização que está conduzindo um processo já com um objetivo final em mãos, digamos, já com o resultado que eles querem. E isso é muito diferente dos processos intergovernamentais, porque geralmente em uma negociação entre governos, você chega na mesa, bota sua posição no papel e tem que ter uma negociação. E como essa Cúpula é convocada pelo secretário-geral, quem definir o resultado final é ele. Ele vai publicar uma declaração da responsabilidade, a partir da visão da ONU, sobre o que foi discutido. Então por isso que eu, por isso que a reunião com Amina Mohammed [vice-chefe da ONU] é importante. Porque com ela a gente vai falar especificamente das preocupações do Brasil no que diz respeito a esse processo preparatório, entendeu?

Canal Rural – Mas quais são as posições individuais do Brasil? O que que é mais caro para o Brasil e que a ministra deve levar?

Zelner – Olha, se eu fosse te sintetizar em uma frase, o Brasil está preocupado em assegurar as condições apra que a agricultura e pecuária brasileiras continuem se desenvolvendo da forma como se desenvolvem, rumo à sustentabilidade, sem imposições externas que não tenham base científica. Então, o que nos preocupa é a imposição de modelos alheios à realidade brasileira que resultarão em restrições ao que se pode fazer ou não aqui no Brasil. A gente acha que sustentabilidade é uma questão de ciência. Através da ciência e inovação a gente pretende  continuar aprimorando a sustentabilidade dos nossos sistemas produtivos, sem que não seja ditado de fora o que é ou não sustentável. O Brasil acredita que há uma diversidade de modelos e sistemas produtivos, desde que sejam sustentáveis e apoiados em princípios e critérios científicos. Então, a preocupação é a imposição de regras que não estejam baseadas nesses princípios e que aí possam gerar restrições comerciais, enfim, restrições de todo o tipo.

Canal Rural – Essa  declaração, apesar de ela não ter o peso de uma acordo feito entre todos os países, vocês acreditam que pode ter o peso de influenciar o comércio mundial e influenciar novas regras em outros campos?

Zelner – Pode. Como não é uma declaração intergovernamental, ela não será vinculante. Portanto, ela não constitui um compromisso que os países estão assumindo. Mas ela constrói uma narrativa. E a narrativa passa a ser usada em outros fóruns onde, sim, se produzem resultados vinculantes. Então, o perigo é você ter uma narrativa que é contrária ao interesse do Brasil e que  aí é levada, por exemplo, para a Organização Mundial do Comércio. Dizer: ‘Olha, agora a gente tem que mudar o comércio, porque lá na Cúpula dos Sistemas Alimentares a gente concordou que a sustentabilidade é isso, aquilo ou outro’. Ou então, levado, por exemplo, para… a comissão quadro que discute a mudança do clima. ‘Olha, agora a gente tem que abordar a mudança no clima desse jeito ou daquele jeito, porque nós concordamos na Cúpula dos Sistemas Alimentares que seria desse jeito’. Mas nós não concordamos, não é?. O documento não é vinculante. Mas ele contribui para reforçar uma narrativa internacional. Então esse é o perigo. Quer dizer, você vai fazendo esses  exemplos e eles vão se somando, você  vai fortalecendo uma narrativa. É importante que a gente ponha os nossos pontos na mesa e que a gente diga: ‘Olha, a visão da América Latina, a visão das América, a visão da América do Sul, tem que estar contemplada nessa narrativa. Nós fazemos parte desse processo’.  Até porque o Brasil, quer dizer, a América Latina é a maior região exportadora líquida de alimentos e a maior região provedora de serviços ambientais. Você não pode falar de alimentos e não levar em conta o que a América Latina pensa.

Canal Rural –  Eles têm de fato essa similaridade, algo que fica fora do que América como um todo faz, ou Ásia, ou outras regiões do globo?

Zelner –  A gente tem essa visão em relação a diversos pontos e essa é uma visão que tem sido veiculada realmente na mídia, enfim, entre vários interlocutores. Quer dizer, os próprios europeus já deixaram claro em diversos documentos que um dos objetivos deles na Cúpula é internacionalizar as diretrizes da ‘Farm to Fork’. E o que é interessante notar é que o USDA, que é o Departamento de Agricultura americano, fez um estudo sobre a ‘Farm to Fork’ e concluiu que se suas regras fossem aplicadas ao mundo inteiro, a gente possivelmente teria um cenário de escassez de alimento e de aumento de preços e de perda da diversidade. Então, o que isso mostra é aquilo que eu tinha falado anteriormente, que a gente não pode ter um modelo que seja aplicado indiscriminadamente a todas as regiões do mundo sem considerar clima, sem considerar cultura, sem considerar nível de desenvolvimento. O que funciona na agricultura europeia, de clima temperado, não funciona necessariamente na agricultura tropical do Brasil. O que é bom para o consumidor europeu, que é um consumidor rico, que já alcançou nível avançado de dieta, de ingestão de proteína, pode não ser o mesmo para um consumidor africano, para um consumidor do Sudeste Asiático que está, por exemplo, passando a consumir proteína animal agora pela primeira vez na vida. Então, você falar, por exemplo, em redução do consumo de proteína animal, quando tem determinados grupos no planeta que sequer comem carne ainda é condenar esses grupos a uma situação perpétua de desnutrição ou de falta de acesso a alimentos. Essa é a preocupação.

Canal Rural – O governo admite que ainda precisam acontecer transformações e trabalhar melhor nos objetivos de desenvolvimento sustentáveis?

Zelner – Certamente. A gente ainda tem aí uma década, e ainda temos muito progresso a fazer. Inclusive, o governo federal está engajado em um processo de levantamento de todas as atividades que faz, que estão relacionadas com a implementação dos ODS [Objetivos de Desenvolvimento Sustentável], para juntar tudo isso, avaliar o nosso progresso, e ver o que a gente pode fazer para acelerar esses avanços também a tempo de atingir o máximo possível todas os ODS até  2030.

Canal Rural – Às vezes no debate são propostas algumas transformações, alguns ajustes, não que feririam, por exemplo, como é feito uma agricultura tropical, mas talvez outras melhorias que possam ali ser debatidas.

Zelner – Sim, sem dúvida. Estou sublinhando para você o que nos preocupa, que são as coisas que obviamente a gente quer evitar. Agora, há muita coisa na narrativa da Cúpula com as quais a gente está de acordo. Com a ênfase nos mais vulneráveis, a importância de você cuidar dos pequenos produtores,  o fato de que a gente tem que ter os três pilares da sustentabilidade em conta de forma equilibrada. Os sistemas alimentares devem, na medida do possível, contribuir  com a adaptação à mudança no clima, sem deixar de lado, obviamente, a importância que a gente tem pela segurança alimentar, Que há visões, que há pontos positivos e elementos e coisas ali que o Brasil poderá aproveitar, certamente, como eu te falei da merenda escolar, do trabalho sobre perdas e desperdícios. Se houver um resultado de um lançamento, por exemplo, de uma coalizão internacional sobre merenda escolar ou sobre perdas e desperdícios, a gente avalia isso como um grande resultado. É algo a que o Brasil provavelmente se juntaria.

Canal Rural – A gente sabe que a Pré-Cúpula tem os principais debates para a Cúpula de fato que acontece em Nova York. Também haveria interesse da ministra em participar presencialmente desse evento no fim de setembro?  

Zelner – Certamente. Em setembro a gente espera no fundo que a situação já esteja boa o suficiente para que todos os países possam participar presencialmente. A importância do tema não se reduzirá, e a ministra certamente quererá estar lá para verificar, inclusive, se as sugestões que a gente vai fazer agora deram resultado também para poder influenciar as decisões de última hora que serão tomadas lá. Então, é bem provável que ela esteja em Nova York também.

Canal Rural – E na visão global, o Brasil sendo um dos grandes exportadores de alimentos, ele tem peso e voz nas discussões e negociações?

Zelner – Eu entendo que sim. Porque todo mundo quer saber o que o Brasil está pensando. A gente é sempre procurado, há um interesse grande da mídia internacional, há um interesse grande de outros países. O Brasil, como guardião da Amazônia, como um dos grandes exportadores, como você mencionou, um país megadiverso, o nosso papel na promoção do desenvolvimento sustentável, no enfrentamento à mudança do clima, em tudo isso é vital. O Brasil certamente é um dos grandes players que não podem ser ignorados.Todo mundo tem interesse em saber o que o Brasil está fazendo, em que a gente participe, em convidar o Brasil.

Canal Rural – Esse objetivo de atingir o desenvolvimento sustentável, eles também podem ter alguma influência na próxima discussão que a gente vai ter na COP 26?

Zelner –  Sem dúvida. A sustentabilidade tem três pilares, como você sabe: social, econômico e ambiental. E eles são interdependentes e indissociáveis. Então, hoje em dia não tem como você falar mais de meio ambiente e não falar de economia. Você não pode falar de inclusão social, sem falar de ecologia, de meio ambiente, enfim, os sistemas produtivos produzem alimentos, mas também geram emprego, também geram renda, também geram inclusão social. Está tudo interligado, quer dizer, a mudança do clima afeta a biodiversidade, a biodiversidade afeta a fertilidade dos solos, a fertilidade dos solos afeta a produtividade da terra, a produtividade da terra afeta a renda do produtor. E aí a gente volta naquele ponto que eu mencionei: embora o resultado dessa Cúpula não seja vinculante, você está construindo uma narrativa que, depois, quem quiser vai pegar aquilo que interessa dessa narrativa  e vai levar pra outros foros, por exemplo na COP, e dizer: ‘Olha, os países acordaram que agora a gente precisa fazer isso e isso e aquilo pra salvar o meio ambiente’.